Com tantas reprises de novelas durante o período mais duro da pandemia, o público desejava uma trama inédita para acompanhar. Na fila de autores estava Lícia Manzo, que teve bons êxitos com 'A Vida Da Gente' (2011), reprisada durante a pandemia e 'Sete Vidas' (2015), ambas histórias das 18h.
Muito se questionava sobre como seria uma trama de Lícia no horário nobre. Ela que tem um estilo próprio, baseado muito mais no diálogo do que em grandes ações e tramas que focam nas relações, mostrando questões que nos fazem refletir sobre a vida. Considerando esses fatores, a expectativa para uma trama de Lícia às 21h era alta.
8 de novembro de 2021 foi a data de estreia de 'Um Lugar Ao Sol'. A novela já sofreu um primeiro baque: uma divulgação muito mal feita. Por ser a primeira trama inédita depois de tantas reprises, o público esperava uma divulgação interessante, mostrando alguns dos personagens. A emissora tratou a trama de Lícia como uma espécie de tapa-buraco para a grande aposta: o remake de 'Pantanal'.
Trama de gêmeos
O recurso de gêmeos já foi muito explorado na teledramaturgia: João Victor e Quinzinho em 'Baila Comigo' (1981), Paulo e Denizard em 'O Outro' (1987), Ruth e Raquel em 'Mulheres de Areia' (1993), Fernanda e Vitória em 'Cara e Coroa' (1995) são apenas alguns exemplos. Com tantas novelas com gêmeos, o que Lícia poderia acrescentar de novo com os gêmeos Christian e Renato?
Muitos pensavam que teríamos uma trama nos motes de 'A Usurpadora', um clássico mexicano. Os gêmeos foram separados ainda quando bebês. Christopher foi adotado por uma família rica e passou a ser chamado de Renato. Christian, o rejeitado, acabou parando num abrigo e vivendo por lá até a fase adulta e sempre cuidando do seu amigo Ravi (Juan Paiva) que nunca conseguiu ser adotado.
Christian sempre questionava o motivo por não ter sido adotado, porque foi deixado para trás e alimentava a esperança de um dia encontrar seu irmão gêmeo. No Rio de Janeiro, Christian conhece Lara (Andréia Horta) e se apaixona pela moça. Os gêmeos já se conheceram no 3º capítulo da novela, algo bem rápido e nisso a troca já aconteceu.
Todo esse início da trama foi cheio de acontecimentos e reviravoltas. O público tinha a sensação de que se perdesse um capítulo, perderia a capacidade de compreender os fatos. Realmente, Um Lugar Ao Sol teve um início bem movimentado. Os gêmeos se conheceram e trocaram de lugar muito rápido, algo que o público imaginava acontecer mais para frente na trama. Renato queria saber como era ser o irmão em uma realidade diferente e resolveu trocar de lugar. O que ele não esperava era que ao subir o morro, seria morto. Aí já não tinha mais jeito, Christian teve de abandonar Lara e toda a sua vida para fingir ser Renato.
O tão sonhado lugar ao sol de Christian estava acontecendo. Renato tinha dinheiro, acesso a tudo que há de melhor no mundo e um relacionamento conturbado com Bárbara (Alinne Moraes) com uma dependência emocional muito grande.
Esse acontecimento fez o público imaginar como seria o momento em que Christian seria descoberto.
Uma novela feminina
O enredo principal da novela é de um personagem masculino: Christian/Renato (Cauã Reymond) que estava no auge ao interpretar os gêmeos. Confesso que nunca me empolguei com os papéis do ator, mas nessa novela ele estava incrível. Tem os meus parabéns!
Ao longo da novela foram as personagens femininas que se sobressaíram e dominaram a trama. O elenco feminino contou com grandes nomes: Alinne Moraes, Andréia Horta, Andréa Beltrão como Rebeca, que conquistou o público e mostrou uma pauta muito importante: etarismo. Ana Beatriz Nogueira, dando um show como Elenice, uma mãe que em alguns momentos lembrava Eva de 'A Vida Da Gente', mas ela tinha um lado cômico que era o diferencial para acabar com o comparativo de mães.
Ana Baird, Denise Fraga, Mariana Lima como Ilana, a melhor amiga de Rebeca e juntas renderam ótimas cenas. Marieta Severo como Dona Noca foi uma maravilha, eu amei vê-la em cena. Lara Tremouroux como Joy rendeu momentos de irritação no público. A moça só queria pichar muros, mas ao conhecer Ravi sua vida mudou. Ele se apaixona por ela, eles acabam tendo um filho, mesmo contra vontade da moça. Joy era bicho solto, como ela mesma dizia.
Renata Gaspar como Stephanie foi outro grande destaque junto de sua irmã Érica (Fernanda de Freitas), que não suportava ver a irmã mais nova sofrer violência doméstica, um plot duro de acompanhar, porque, ao vê-lo, nos deparamos com a realidade.
A novela tratou de várias temáticas do feminino, mas esses assuntos não se restringem apenas às mulheres, são assuntos que precisam ser discutidos por todos, pois, é através do diálogo e a mudança no modo de pensar algumas questões que podemos evoluir como pessoas e como sociedade.
Grandes atuações no time masculino
Não me canso de elogiar Cauã Reymond, mas houve outros atores que deram um show. O que dizer de Juan Paiva como Ravi? Simplesmente perfeito. Ravi era uma pessoa que sofria o tempo todo, por conta das pancadas da vida e por ter que viver mentindo para esconder o segredo de Christian, ou melhor, Chris, como ele chamava o amigo que admirava.
José De Abreu como Santiago estava impecável. Outro personagem que adorei ver em cena, sempre com referências literárias, um recurso que Lícia explorou bastante nessa novela e foi muito interessante ver.
Outros atores que tiveram boas atuações: Daniel Dantas como Túlio, o marido de Rebeca que só pensava em roubar dinheiro da empresa do sogro, Gabriel Leone como Felipe que balançou Rebeca e a fez despertar para um relacionamento com homem mais novo, Marco Ricca, Fernando Eiras como Teodoro o irmão de Elenice, entre outros.
A novela do meio para o final deu a sensação de que se perdeu. As tramas ficaram em um looping quase que eterno, pois entrava semana e nada de uma resolução. A trama principal de Christian não evoluía muito, ficava sempre no campo de ninguém descobrir o seu segredo e quem descobria, por uma ironia do destino ou não, acabava morrendo, o que para ele era um certo alívio, assim a verdade se mantinha em segredo.
Este e outros problemas começaram a incomodar o público que já não simpatizava com o protagonista da novela. Alguns se questionavam se ele era o mocinho ou vilão? Ao olhar alguns elementos, o público chegou a pensar o que aconteceu com a trama de Lícia Manzo, pois parecia que não era uma novela dela.
Líciaverso
O estilo de Lícia Manzo sempre esteve ali em Um Lugar Ao Sol. Pode não ter sido igual as suas novelas anteriores A Vida Da Gente e Sete Vidas, até porque são obras diferentes, mas o estilo com um diálogo forte e sempre presente, poucas ações, as questões humanas e relações, elas estiveram na trama das 21h assim como nas anteriores.
No Líciaverso não existem mocinhos e vilões bem definidos, lá existem pessoas que acertam, que erram, que são uma grande mistura de várias coisas e sentimentos. Até porque ninguém é uma coisa só ao longo da vida. A caminhada durante a jornada gera transformações, seja na ficção ou fora dela.
A direção de Maurício Farias foi ótima, com muito realismo. Direção, autora, atores e toda a equipe merecem muitos e muitos parabéns pelo trabalho. Essa foi uma novela atípica, onde todos os envolvidos tiveram além dos desafios habituais de se fazer e gravar uma novela, ainda tinham de enfrentar a pandemia. O saldo final foi uma obra fechada, algo que foge da característica principal da telenovela que é ser uma obra aberta.
Um Lugar Ao Sol pode não ser a melhor novela do mundo, a melhor das 21h, mas com certeza não é a pior. Os preocupados de plantão, podem nomeá-la de “flop”, por conta de questões de audiência, desenvolvimento, entre outros fatores… essa é uma questão aberta a inúmeras interpretações.
Um Lugar Ao Sol não foi vendida como uma trama de grandes paixões, com um casal de protagonistas vivendo um grande amor. Tinha uma história de amor, tinha um amor de irmãos. Christian e Ravi não eram irmãos de sangue, mas eram de jornada, por ironia do destino, de luta, dividiam as durezas da vida. A dupla pode ser facilmente comparada a Ana e Manuela em A Vida Da Gente, onde a representação do amor ali era o amor das irmãs, a linda união que o destino tratou de bagunçar.
A novela nos fez refletir sobre as questões femininas, sobre caráter, ética e moral. É uma trama nos mostrando a vida como ela é. Existem alguns detalhes que ao assistirmos podemos pensar e falar: “nossa, mas isso aí só em novela mesmo”. Ficção não é mesmo galera? Tem coisa que é só lá mesmo! Entretanto, tinha muito da vida na trama de Lícia Manzo. Tinha reflexões importantes, críticas sociais, personagens em dúvida o tempo todo e a dureza da realidade.
Lícia nunca teve pretensões de escrever para o horário nobre. Entre acertos e erros, Um Lugar Ao Sol foi uma novela que acompanhei do início ao fim sem grandes esforços, curtir a jornada nos 4 meses de novela no ar. Espero de verdade que Lícia continue escrevendo suas histórias, não importa o horário, porque o seu texto, estilo, os diálogos, tudo merece ser apreciado.
Há quem compare Lícia Manzo com Manoel Carlos por conta do gênero crônica do cotidiano, mas a autora difere do pai das Helenas. Ela vai mais profundo nos diálogos, nos aproxima mais, parece que em seu texto tem dramas que já passamos ou conhecemos alguém que passou.
Christian, a cada capítulo, se mostrava mais detestável por conta de suas atitudes. Há quem diga que ele é vilão, mas, na verdade, ele é uma mistura de tudo. O seu lado mais sombrio já estava em si, só não vimos no início, mas para ter o seu tão sonhado lugar ao sol, ele teve que deixar transparecer o que há de mais detestável no ser humano e que ele fazia questão de apontar nos outros.