Obras do passado tem lá seus problemas, porém a realização de cortes pode ser considerada uma forma de apagamento daquilo que já existiu e não deve ser repetido
Essa é uma pergunta complexa, pois envolve a visão e repertório particular de cada pessoa e pode nos levar a uma questão: será que estamos cada vez mais envolvidos com as produções que assistimos a ponto de não saber separar as coisas?
As famosas reprises de novelas são algo muito presente na vida do público, pois o famoso 'Vale a Pena Ver de Novo' – criado em 1980 como uma faixa dedicada a isso – mas antes disso a Globo já reexibia suas novelas às tardes, desde a sua criação. Ao longo do tempo, a faixa foi mudando de horário, já exibiu minisséries e até programas como o 'Você Decide', por exemplo.
A cada ano, a faixa tem movimentado discussões nas redes sociais sobre possibilidades de próximas novelas a serem reapresentadas, entre outros temas que permeiam o bloco e que os noveleiros adoram debater.
Em 2010, os Canais Globo ganharam o VIVA, um canal de TV por assinatura inicialmente pensado para o público feminino, mas que ganhou sucesso ao longo dos anos com reprises de grandes sucessos da Globo como novelas, minisséries, programas de auditório, especiais, entre outros.
As primeiras atrações do canal foram as novelas ‘Por Amor’ (1997), ‘Quatro Por Quatro’ (1994) e 'Malhação 2000'. Além desses, 'Sítio do Picapau Amarelo', 'Sai de Baixo', 'Mais Você' e outros programas também fizeram parte do primeiro ano do canal. Ao longo dos anos, várias novelas reprisadas geraram boa repercussão nas redes sociais.
Nos últimos anos, o VIVA tem reprisado novelas dos anos 2000, o que tem incomodado algumas pessoas que sempre fazem questão de relembrar que o objetivo do canal é reprisar conteúdos mais antigos – com ressalvas, uma vez que essas novelas já tem quase 20 anos ou mais.
Polêmica em 2021
Em 2021, o VIVA reprisou 'Da Cor do Pecado' (2004), novela que tem um título com uma expressão considerada racista. A partir disso, o canal passou a exibir um aviso no início e ao fim da novela com a seguinte frase "Essa obra reproduz comportamentos e costumes da época em que foi realizada", aviso este que passou a ser estendido a toda programação.
Esse aviso usado no VIVA também passou a ser utilizado nas novelas que fazem parte do projeto resgate no Globoplay, com a frase sendo exibida antes de iniciar um capítulo.
Polêmica envolvendo Malhação 1998
O Canal VIVA que atualmente está reprisando 'Malhação 1998' fez corte de uma cena de Blackface - quando pessoas brancas "se pintam" para representar pessoas negras. Essa decisão foi anunciada no Twitter em 1 de maio deste ano.
O comunicado gerou comentários e o diretor de mídia e conteúdo do Grupo Globo, Erick Bretas, explicou o porquê do corte. Na ocasião, os capítulos exibiriam uma banda de rastafáris que iria se apresentar em um concurso. A ausência dos membros faz com que meninos brancos se pintem de preto e se apresentem no lugar dos cantores. As consequências das ações se estendem por vários capítulos, segundo o diretor.
"Em 1998 isso poderia ser tolerado. A sociedade evoluiu e hoje cenas assim são consideradas ofensivas", diz o executivo.
A frase de Bretas é importante e nos faz pensar em várias questões. Novela é um produto do seu tempo, do momento em que é feito, tanto que quando uma novela demora para ser reprisada, ouve-se a frase "novela X está datada", justamente por trazer expressões, ideias e comportamentos do tempo em que foi exibida.
Alguns comportamentos exibidos nas novelas, ao serem vistos com os olhos e consciência de hoje, nos faz achar um absurdo. Um bom exemplo é o comportamento do professor Fábio em 'A Gata Comeu' (1985) em seu relacionamento com Jô Penteado, tanto que confesso que ao assistir, me questionei várias vezes com o seguinte pensamento: "será que em 1985 era assim?" Sinceramente, nunca terei essa resposta, mas o que sei é que em 2023 esse tipo de comportamento que ocorria na trama de Ivani Ribeiro, jamais seria recriado em uma novela.
Ao assistirmos às novelas, seja na própria Globo, Canal VIVA ou Globoplay, sejam as atuais ou as mais antigas, o que o público precisa e deve ter em mente é que a produção pode ser uma excelente maneira de fazer uma análise geral, ou seja, olhar para o folhetim de determinado ano e ver os temas que eram discutidos na época, a moda, ideias e assim ao assistir uma trama de 1980, por exemplo, em 2023 poder ver o quanto evoluímos ou não como sociedade em alguns assuntos.
Há folhetins que envelheceram mal em alguns assuntos, mas tem aqueles que são atemporais, como é o caso de 'Vale Tudo' (1988) do saudoso Gilberto Braga em parceria com Aguinaldo Silva e Leonor Bassères. Exatos 35 anos se passaram e a novela continua mais atual do que nunca em sua discussão principal. Claro que assim como outras, ao analisarmos alguns detalhes, certamente terão ideias e comportamentos um tanto absurdos, o que é normal, mas o importante é ao assistir ter a seguinte ideia: no presente estamos em 2023, mas ao assistir os seus 204 viajamos para o ano de 1988 em que muitos não existiam, como é o meu caso, e essa viagem entre passado e presente pode nos fazer refletir o quanto avançamos ou não.
Que bom saber que em 2023 progredimos em muitas pautas importantes e precisamos avançar mais! No entanto, é importante saber separar as coisas, ter esse olhar de distanciamento, ou seja, saber que no passado não havia esse nível de conscientização que temos hoje.
Cortes de cenas e frases em determinados horários é comum e o Vale a Pena tá aí para não me deixar mentir e aqui diversos exemplos podem ser citados. O mais recente foi na reprise de 'A Favorita' (2022), onde várias frases da personagem Flora foram cortadas por serem muito pesadas e etaristas, por exemplo. Na atual reprise de 'O Rei do Gado' a personagem Léia (Silvia Pfeifer) sofre violência doméstica do companheiro Ralf (Oscar Magrini) e cenas assim foram cortadas.
Agora, depois desse acontecimento, os noveleiros podem questionar: será que nas próximas reprises no Canal VIVA e resgates do Globoplay as novelas vão vir super retalhadas? Essa é uma resposta que não temos no momento e não se sabe se teremos, porém, o que podemos ter no momento é discernimento e consciência, seja para ver uma obra do passado, presente e até do futuro que está por vir.